Se você tem mais de quarenta anos e um apreço por ironias históricas, certamente se lembra da marchinha de Carnaval: “É dos carecas que elas gostam mais…” Naquela época, a letra soava como um consolo brincalhão para a minoria. Afinal, estávamos na era de ouro da elegância masculina, quando a ausência do chapéu era um sinal de desleixo quase social. O chapéu não era um acessório; era sinal de respeitabilidade.

Durante milênios, do solidéu papal à mitra faraônica, o chapéu reinou no topo da cadeia social. Ele era o GPS de status, a proteção contra o sol e o frio, o telhado ambulante da dignidade. Um homem sem ele era, literalmente, um homem nu para os padrões da época.

Mas eis que as carruagens deram lugar ao automóvel. E o automóvel atropelou o chapéu. Silenciosamente, sem buzina, sem alarde.

Não houve um decreto real ou um manifesto de cabeleireiros. Foi a mais pura e cruel das mecânicas. Tente encaixar-se em um automóvel dos anos 50 usando uma cartola. A diferença entre a pé direito dos tetos de 2,5 metros das carruagens, onde as plumas e abas conviviam em luxuosa harmonia, e o teto rebaixado e aerodinâmico de 1,2 metro, se tanto.

Foi o epitáfio do chapéu…

O boné, com sua covardia curvada, até tenta uma trégua, mas o chapéu elegante, rígido em sua forma e convicção, foi impiedosamente esmagado contra o vinil do teto. A cabeça descoberta, por pragmatismo físico, tornou-se o novo normal. O Homo Sapiens trocou a elegância vertical pelo conforto do transporte.

O Cérebro, a Cartola e o Contraste Simbólico

Como neurocientista, é impossível ignorar o fascínio que o chapéu sempre exerceu sobre o nosso córtex pré-frontal. O cérebro adora contradições simbólicas. Tente explicar por que algumas doutrinas religiosas exigem a cobertura para reverenciar o divino, enquanto outras a proíbem, como se ela bloqueasse a conexão celestial. O chapéu é a manifestação tátil do poder, veja a coroa real, a mitra episcopal. Mas ao mesmo tempo é também a materialização da humilhação, como no infame “chapéu de burro” das escolas do passado. O acessório, em sua paradoxal simbologia, humilha uns e homenageia outros.

Essa relação, confesso, tornou-se profundamente pessoal em 2001, após um acidente aéreo que me deixou, de forma permanente e inequívoca, um membro orgulhoso da irmandade dos carecas.

Descobri o chapéu não como adorno, mas como extensão do meu córtex somatossensorial, uma proteção essencial contra o sol tropical e o frio cortante. Eu sonhava com o “chapéu do futuro” – um wearable craniano com painéis solares e antenas 5G. A realidade foi menos ambiciosa: apenas uma prateleira cheia de bonés esquecidos. Eu havia assumido minha careca.

A Vitória da Geometria Pura

Hollywood, a princípio, resistiu. Injetou fortunas em perucas e apliques para seus protagonistas.

Sean Connery só se tornou o 007 mais irresistível quando o mundo percebeu a inevitabilidade de sua calvície. Yul Brynner foi um vanguardista, recusando disfarces e assumindo a geometria perfeita de seu crânio – e sendo um dos homens mais cobiçados de sua era. Hoje, a careca em figuras como Patrick Stewart não é ausência; é uma declaração de dominância.

A neurociência, sempre atrasada, mas sempre conclusiva, nos dá a chave: o giro fusiforme, nossa área de reconhecimento facial, processa a ausência de cabelo de forma distinta. Sem a “distração capilar”, o foco se concentra nos traços faciais, na estrutura óssea. Estudos recentes sugerem que o cérebro percebe homens carecas como mais dominantes, mais confiáveis e – pasmem – mais altos. Sim, seu córtex pré-frontal está, inconscientemente, adicionando centímetros. É como se a evolução tivesse programado um atalho: Menos cabelo = Mais substância.

Portanto, caros leitores, o triunfo dos carecas não é acidental, mas uma neuroadaptação coletiva catalisada pela engenharia automotiva. Libertamos nossas cabeças das amarras têxteis, trocando a elegância protetora do chapéu pelo protetor solar. E, nesse processo, descobrimos que o cérebro humano está intrinsecamente preparado para apreciar a tela limpa de um crânio lustroso – um quadro onde projetamos confiança, maturidade e insuspeitos centímetros extras.

O chapéu sucumbiu à aerodinâmica. Mas o maior chapéu, aquele que a neurociência celebra, é invisível: a confiança de assumir a própria cabeça.

Este artigo é o episódio 209 da série Sentido Saúde que vai ao no jornal da rádio BandNews BH, às quartas-feiras. Para ouvir os programas da rádio, acesse o meu PERFIL NO INSTAGRAM

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